A fiança no processo penal Brasileiro corresponde ao direito-garantia do preso em responder ao processo em liberdade quando a prisão provisória se demonstrar desnecessária, e/ou não houver vedação legal. Possui previsão Constitucional no art. 5º, LXVI, o qual dispõe: “ninguém será levado à prisão ou nela mantido quando a lei admitir a liberdade provisória com ou sem fiança”.
Afirma-se, ainda, que nesse conceito de “processo”, em que seja cabível a concessão de fiança, também se insere o inquérito policial, pois, se ‘ninguém será levado à prisão ou nela mantido quando a “lei” admitir liberdade provisória’, e, já que a própria “lei” (Código de processo penal) admite a concessão de liberdade provisória decidida pelo delegado de polícia nas hipóteses que elenca (artigos 322 e seguintes do CPP), se mostra totalmente Constitucional tal exegese nesse sentido.
Ademais, a concessão de fiança nos delitos punidos com reclusão até 4 (quatro) anos, deverá ser arbitrada pelo Delegado de Polícia da circunscrição objeto do cerceamento de liberdade do suspeito, sempre que a lei admitir a liberdade provisória mediante fiança, havendo ou não requerimento do interessado, e tal decisão deverá ser sempre fundamentada, a fim de que o suspeito possa dela recorrer (v.g., recurso dirigido ao Chefe de Polícia ou ao Delegado Geral de Polícia, para Estados que adotem tais nomenclaturas, aplicando-se analogicamente o artigo 5º, §2º, CPP: “Do despacho que indeferir o requerimento de abertura de inquérito caberá recurso para o Chefe de Polícia”) ou interpor outras medidas judiciais, caso entenda pertinente, tudo conforme se extrai do Código de Processo Penal.
Já em relação às contravenções penais, com o advento da Lei nº 9.099/95 tal garantia processual-penal tornou-se um tanto quanto inócua, visto que o preso por tais delitos tidos com de “menor potencial ofensivo” poderá, mediante a assunção do compromisso legal de comparecimento ao juizado especial criminal, obter sua liberdade provisória independente de fiança, apenas com a aposição de sua assinatura no termo de compromisso, lavrando-se, então, o termo circunstanciado de ocorrência, que nada mais é do que um substituto do auto de prisão em flagrante e consequente inquérito policial. Ocorre que, caso o preso não assuma tal compromisso, deverá residualmente o Delegado proceder à autuação em flagrante delito do mesmo e, ao final, despachar pela possibilidade de recolhimento da fiança, com aplicação dos preceitos vistos acima.
Por outro lado, tendo-se em mente possuir o instituto da fiança conteúdo de decisão que torna possível o cerceamento de liberdade do investigado quando denegada, seja devido aos altos valores impostos pela autoridade de polícia judiciária, seja em função da interpretação jurídica do delegado quanto aos conceitos jurídicos-normativos de “réu vadio”, de “crimes de reclusão que provoquem clamor público”, ou de “infringência das obrigações do art. 350, CPP sem justo motivo” – situações previstas nos artigos 323 e 324 do CPP, e que serão valoradas pelo delegado de polícia judiciária quando da negativa da fiança ao suspeito nelas consubstanciada, deverá tal ato de substância e efeito jurisdicional ser devidamente motivado, sob pena de impetração de Mandado de Segurança em face da autoridade que a concede extrapolando seus valores descritos em lei, ou ausente dolosamente sua fundamentação com objetivo inidôneo, extroverso e dissimulado de cerceamento de liberdade, sem prejuízo das medidas administrativo-disciplinares e penais que daí poderá resultar (v.g., Art. 4, “e”, da Lei 4898/65 – Constitui também abuso de autoridade: levar à prisão e nela deter quem quer que se proponha a prestar fiança, permitida em lei).
Cabe ressaltar que o delegado de polícia não exerce jurisdição, nem ao menos emite decisões judiciais, porém, o próprio Código de Processo Penal, em algumas hipóteses, tais como a de concessão de fiança-crime (ou outras, tais como expedição de mandado de condução coercitiva, p. ex.), determina que o delegado de polícia exerça tais atribuições quando da presidência do inquérito policial, operando em tais decisões com conteúdo substancial e efeitos similares aos jurisdicionais.
Balizando tal entendimento, temos a CONVENÇÃO AMERICANA DE DIREITOS HUMANOS (PACTO DE SAN JOSÉ DA COSTA RICA), de 1969, ratificada pelo Brasil em 25 de setembro de 1992, e introduzida no âmbito do direito interno por força do Decreto nº 678/92, o qual elenca, em seu artigo 7º – Direito à liberdade pessoal -, no item 5, que: “Toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade por lei a exercer funções judiciais e tem o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo. Sua liberdade pode ser condicionada a garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo”.
Pois bem. No artigo 7º, item 5, do Pacto São José, encontramos o termo “funções judiciais”, que em muito se difere de “cargos judiciais”. Juiz de direito exerce um “cargo” de natureza judicial, e suas funções são tipicamente jurisdicionais (mas cumula-se, também, as funções atípicas de natureza administrativa, v.g, concessão de férias aos subordinados).
Conforme ensina Hely Lopes Meirelles, “Cargo público é o lugar instituído na organização do serviço público, com denominação própria, atribuições e responsabilidades específicas e estipêndio correspondente, para ser provido e exercido por um titular, na forma estabelecida em lei. Função é a atribuição ou o conjunto de atribuições que a Administração confere a cada categoria profissional ou comete individualmente a determinados servidores para a execução de serviços eventuais”.
Além disso, abstrai-se do advento da Emenda Constitucional nº 45/2004, com inserção do §3º ao artigo 5º da CF, o qual dispôs “Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”, que atualmente que os tratados internacionais sobre Direitos Humanos aprovados antes da entrada em vigor dessa Emenda 45/2004 possuem índole Supralegal ou Constitucional, dependendo da corrente doutrinária que se adote.
Nesse ínterim, entendendo possuírem natureza de normas Constitucionais, temos decisão do Min. Celso de Mello – HC 87.585-TO (para tratados vigentes antes da EC nº 45/2004) e como Emenda Constitucional, para os novos tratados após esta data. Já o Min. Gilmar Mendes corrobora o entendimento de possuírem os tratados sobre direitos humanos natureza de normas Supralegais, num patamar intermediário entre a Constituição e as normas infralegais – RE 466.343-SP.
Porém, em qualquer caso, entende-se majoritariamente que tais tratados serão hierarquicamente superiores às leis ordinárias já estabelecidas nacionalmente, devendo os legisladores (quando da materialização de novas leis) e os aplicadores do direito, quando de sua exegese, balizarem seus entendimentos conforme tais dispositivos. É o caso doPacto de San José da Costa Rica, acima analisado no tocante à exegese do termo “outra autoridade por lei a exercer funções judiciais”, o qual deve ser interpretado, quando da decisão de arbitramento de fiança tomada pelo delegado de polícia judiciária, no sentido de que este exerce funções judiciais atípicas e semelhantes às jurisdicionais nos casos em que a própria lei fomenta, autoriza ou determina. É o caso do art. 322, do Código de Processo Penal.
Portanto, não há de se negar o liame – histórico e atual – existente entre o Poder Judiciário e a Polícia Judiciária Brasileira, devendo tais prerrogativas funcionais de seus comandantes – Juiz de Direito e Delegado de Polícia Judiciária, respectivamente, retornarem à isonomia (v.g., garantias constitucionais, remuneração, prerrogativas de foro, dentre outras), a fim de que o trabalho entre as instituições se perfaça de modo satisfatório e condizente com a atual realidade do País, pois o mesmo sujeito que comete o crime, é investigado, preso e submetido a um processo pré-processual denominado “inquérito policial”, é também julgado e tem sua pena fiscalizada por um Juiz igualmente capaz moral e intelectualmente, de mesma formação jurídica da do Delegado de Polícia.
Inclusive não existe no Brasil, com exceção da carreira jurídica de Juiz do Tribunal (administrativo) Marítimo do Rio de Janeiro, nenhuma outra que tanto se assemelhe em atribuições e decisões correlatas às de Juiz de Direito como a do Delegado de Polícia: o primeiro, preside o processo judicial, com oitiva de vítima, testemunhas, réu, despachos e decisões (sentença); o segundo, preside o processo pré-judicial denominado inquérito policial, com a semelhante oitiva de vítimas, testemunhas, suspeito/indiciado, despachos, representações e decisões (de indiciamento, de lavratura de flagrante, de arbitramento de fiança, etc).
Assim, fulcramos nosso entendimento no sentido de que o Delegado de Polícia judiciária, por expressa disposição legal prevista nos artigos 322 e ss., do Código de Processo Penal Brasileiro, lastreado ainda em normas Supralegais e/ou de natureza Constitucional, v.g., art. 7º, item 5, do Pacto de São José da Costa Rica, exerce atipicamente funções judiciais, de conteúdo substancial e efeitos jurisdicionais, cujo reflexo se dá necessariamente nostatus libertatis da pessoa humana, quando, por exemplo, decide pelo arbitramento de fiança-crime ao suspeito, em prol de seu direito de ser posto em liberdade quando a lei o permitir, aguardando-se o prosseguimento do “processo” judicial/inquérito policial em liberdade, conforme visto acima. Corolário do princípio Constitucional da presunção de inocência.A fiança no processo penal Brasileiro corresponde ao direito-garantia do preso em responder ao processo em liberdade quando a prisão provisória se demonstrar desnecessária, e/ou não houver vedação legal. Possui previsão Constitucional no art. 5º, LXVI, o qual dispõe: “ninguém será levado à prisão ou nela mantido quando a lei admitir a liberdade provisória com ou sem fiança”.
Sobre o autor
Fabrício De Santis Conceição
Delegado de Polícia do Estado do Rio Grande do Sul. Colunista e correspondente da região Sul/Suldeste do Portal Nacional dos Delegados (www.delegados.com.br). Professor Universitário. Foi Delegado de Polícia no Estado da Paraíba (turma de 2003), onde exerceu a função de Vice-presidente da Associação dos Delegados de Polícia do Estado – ADEPOL/PB, mandato 2008/2010. Exerceu o cargo de Gerente de Inteligência da Secretaria de Estado da Segurança e Defesa Social do Estado da Paraíba (2007-2008). Foi professor da Academia de Polícia Civil do Estado da Paraíba, e professor Universitário da Associação de Ensino Renovado – ASPER (2007 a 2010) e de cursinhos preparatórios pra concurso em João Pessoa/PB. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Penal, Processo Penal e Direito Constitucional. É Pós-graduado em Direito Penal pela Universidade Metropolitanas Unidas – UNIFMU/SP, e especialista em Tribunal do Juri, pela Escola Superior de Advocacia de São Paulo – ESA/SP (2002). Atuou como Defensor dativo, junto a Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, e como advogado, exerceu a função de membro da Comissão de Direitos e Prerrogativas da Secção Central (Sé) da OAB/SP , e da Comissão de Tribunal do Juri da Secção Penha de França/SP (2001-2004). Ex-agente penitenciário da Penitenciária de Segurança Máxima de Pacaembú/SP, e do Centro de Detenção Provisório I, de Osasco/SP (1997-2001).
Publicado em 15/12/2015