Carreira Jurídica Militar – De Volta à Ditadura?

Tramita na Assembléia Legislativa de Minas Gerais a PEC 59, de autoria de alguns membros do parlamento, com o objetivo de exigir a formação superior em direito para ingresso no oficialato da Polícia Militar de Minas Gerais, além de atribuir à carreira militar o status de jurídica. Muito mais que uma simples modificação nos requisitos de ingresso à carreira ou em sua nomenclatura, a proposição exige atenção especial da sociedade e do próprio Governo, sob pena de duro golpe ao Estado Democrático de Direito e à própria Constituição.
É de se observar, inicialmente, que a reivindicação dos militares ocorre em reação ao recente reconhecimento na Constituição Estadual de carreira jurídica de Estado aos Delegados de Polícia, fruto de amplo e transparente debate social, especialmente como segunda proposta mais votada no seminário de segurança pública realizado pela própria Assembléia em 2006, além de fundamentado em disposições expressas do Conselho Nacional de Justiça e em decisões do Supremo Tribunal Federal. Ainda assim, a proposição relativa aos Delegados de Polícia amadureceu por longos quatro anos em nosso Parlamento.

A proposta dos militares não foi debatida ou analisada, sequer superficialmente. É o que expõe em seu blog, aliás, o renomado Professor Sapori, ex-Secretário de Estado de Defesa Social, Coordenador do Curso de Ciências Sociais da PUC Minas e Secretário Executivo do Instituto Minas Pela Paz:
“A conquista recente dos Delegados da PCMG suscitou uma resposta anacrônica e irracional de setores do oficialato da PMMG. E as entidades representativas das diversas carreiras da PCMG estão reagindo à PEC 59, como era de se esperar.
Confesso-me abismado com a PEC 59/2010. Jamais podia imaginar que o oficialato de uma Polícia Militar pudesse reivindicar o status de carreira jurídica. Para tanto estão prevendo que o ingresso no quadro do oficialato da PMMG exigirá o bacharelado em Direito.

Eis um infeliz retrocesso na história da Polícia Militar de Minas Gerais!
Na ânsia de não perder espaço político para os Delegados mineiros, setores do oficialato da PMMG estão metendo os pés pelas mãos.” (grifo nosso).

Em seguida é preciso que se esclareça o que significa dizer que determinada carreira é jurídica?

A definição de carreira jurídica nos é apresentada em dois planos. No normativo, o art. 2º da Resolução nº 11/2006 do Conselho Nacional de Justiça prevê que “Considera-se atividade jurídica aquela exercida com exclusividade por bacharel em Direito, bem inclusive de magistério superior, que exija a utilização preponderante de conhecimento jurídico, vedada a contagem do estágio acadêmico ou qualquer atividade anterior à colação de grau.

No plano jurisprudencial, o Supremo Tribunal Federal, mais alta corte Judiciária do país e responsável pela defesa das disposições constitucionais já trouxe em inúmeros de seus julgados a caracterização de carreira jurídica. A título de ilustração, o Ministro Carlos Ayres Brito, em voto proferido na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3.460, discorre que “Há exceções, reconheço, nesse plano do preparo técnico para a solução de controvérsias. E elas estão, assim penso, justamente nas atividades policiais e nas de natureza cartorária. É que a Constituição mesma já distingue as coisas. Quero dizer: se a atividade policial diz respeito ao cargo de Delegado, ela se define como de caráter jurídico.

[…] Isto porque: a) desde o primitivo § 4º do artigo 144 da Constituição, que o cargo de Delegado de Polícia é tido como equiparável àqueles integrantes das chamadas carreiras jurídicas […]”.
Notadamente no mesmo sentido, o Ministro Cezar Peluso, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.614/PR, asseverou que“compete somente às polícias judiciárias (e não às militares) a lavratura de termos circunstanciados (Lei nº 9.099/95) –, cabe ao delegado de polícia a realização de “um juízo jurídico de avaliação dos fatos que são expostos”.
Portanto, de forma mais objetiva possível, pode-se afirmar que pertencem às carreiras jurídicas os cargos que, além de exigirem formação superior em direito pela utilização inevitável e preponderante de conhecimentos jurídicos, atuam no processo (ainda que na fase pré-processual) com capacidade postulatória, em nome próprio, com a realização de valoração jurídica. Sabidamente, pertencem às carreiras jurídicas os cargos de Magistrado, Promotor de Justiça, Defensor Público, Procurador do Estado e Delegado de Polícia, essencialmente.
Na atuação da Polícia Militar, conforme disposto no art. 144 da Constituição da República, não há utilização de conhecimentos jurídicos de forma preponderante, tampouco de forma considerável pois ao órgão cabe a manutenção da ordem e a prevenção do crime, especialmente através da realização de policiamento (patrulhamento) ostensivo, dando visibilidade à presença do Estado de forma a inibir a prática do delito.

Ainda que nos refiramos à apuração de crimes militares não há que se falar em carreira jurídica. O Oficial Militar responsável pela elaboração de inquérito policial militar realiza mera adequação matemática de uma conduta a uma norma militar, inexistindo aqui capacidade postulatória e tampouco valoração jurídica por parte de seus responsáveis. É por tal razão que o policial militar que age em legítima defesa e no estrito cumprimento do dever legal, ainda assim, é preso e indiciado pelo crime penal. Basta lembrar que o IPM é realizado, indistintamente por qualquer Oficial da Polícia Militar, sem que possua formação superior em direito.
Por que então a busca de se criar a inexistente figura do militar jurista? O que pretendem, pois, os militares com a tentativa equivocada de tal inserção?
Como muito bem afirmado pelo Professor Sapori, trata-se de reação dos Oficiais, motivada pelo medo da perda de prestígio em relação aos Delegados de Polícia e, mais, pelo medo da inevitável diferenciação salarial que deve existir entre os cargos.

Os Oficiais da Polícia Militar de Minas Gerais, sabidamente, alegam uma inconstitucional e absurda vinculação salarial com os Delegados de Polícia como questão cultural no Estado. Ora, a remuneração dos diversos cargos da Administração Pública deve obedecer aos critérios de requisito, à natureza das funções e ao grau de responsabilidade, por inarredável previsão constitucional. Não há como se defender a tal vinculação porque, pertencendo os Delegados de Polícia às carreiras jurídicas, tal quais deve ser tratado sob o aspecto remuneratório.
Mas seria menos preocupante se o único objetivo do Oficialato da Polícia Militar de Minas Gerais fosse o “prestígio jurídico”. Por detrás da proposta está uma tendência já hoje observada de militarização da investigação criminal, o que nos remete ao período sombrio da ditadura militar em nosso país.
É que a função constitucional da Polícia Militar é a prevenção do crime e a manutenção da ordem. Não é sem razão que os policiais militares usam uniforme e uma de suas principais estratégias deveria ser a presença policial com o objetivo de inibir a prática do crime. Diz-se “deveria” porque se observa em nosso Estado o abandono da prevenção em prol de uma cultura de repressão.
Imagine-se presenciando diariamente, na saída pela manhã e no retorno à noite, a presença de uma dupla de policiais militares rondando a pé o quarteirão residencial. Sentir-se-ia seguro? Será que ali ocorreriam crimes contra o patrimônio? Como se explicar a atuação repressiva em prejuízo da prevenção?
Basta examinar as ferramentas motivacionais dos estatutos da PMMG. Não há previsão de premiação para os militares ou unidades militares que reduzam o índice de criminalidade em determinada região, mas, sim, existe premiação para a realização de prisões e apreensões. Institucional e culturalmente na Polícia Militar de Minas Gerais o militar que impede a ocorrência de delitos através de eficiente patrulhamento e presença policial, não é reconhecido, enquanto aquele que prende tem méritos. O que é mais importante: evitar que o crime ocorra ou prender o criminoso depois de sua ocorrência?

O abandono da prevenção pode ser comprovado pela simples observação cotidiana da ausência de viaturas e de policiais militares, aliada à ilegal atuação da P2 (militares sem farda) que exercem atividade investigativa ilegal, repita-se, desprovida de procedimento e de controle por quem quer que seja.
Pois bem, a Polícia Militar em Minas Gerais tem se dedicado a atuar depois da ocorrência do crime, em concorrência com a Polícia Civil. Nessa atuação, vítimas, testemunhas e criminosos já tem sido levados às unidades militares para diversos procedimentos (não previstos em lei) e o objetivo maior da PEC 59 é abrir uma porta para que a investigação criminal seja feita intra muros de unidades militares, remetendo-nos, uma vez mais, ao período sombrio da ditadura. Não basta a prisão de supostos criminosos. É preciso que a investigação criminal seja realizada em estrita obediência aos preceitos legais de forma a se garantir o processo penal futuro e a responsabilização do autor do crime.
É cristalina a absoluta ausência de interesse público na aprovação da referida PEC, tratando-se de manobra rasteira de tentar impor de forma ilegítima uma situação inexistente por pura vaidade classista.

É oportuno se registrar que o militarismo possui características próprias que tem como fundamento o enfrentamento ao inimigo, destinado às guerras. Ademais, o regime militar possui benefícios próprios, dentre os quais os previdenciários. Acredita-se que o Oficialato não pretenda deles abrir mão para se tornar carreira jurídica.
O atual estágio do Estado Democrático de Direito, alcançado a duras penas em nosso país e em constante amadurecimento, exige-nos uma reflexão mais profunda sobre a real necessidade de uma Polícia Militar para manutenção da ordem social e prevenção da criminalidade. Qual o verdadeiro sentido de uma polícia militarizada para agir no meio social?
Pretender a formação em curso superior para, em tese, maior qualificação de seus profissionais, é absolutamente legítimo. Por que então não se formam policiais pedagogos, assistentes sociais, sociólogos? Profissionais mais bem capacitados para a proximidade com o cidadão, para a presença visível que traz concreta sensação de segurança?
É necessário, urgentemente, que nos atentemos aos verdadeiros objetivos do Oficialato da Polícia Militar de Minas Gerais, cujas estratégias, não raras vezes, sequer encontram respaldo no próprio corpo militar que sustenta a instituição. Não se pode permitir que uma proposta tão grave à democracia seja votada e aprovada sob cortinas e à toque de caixa sem amplo debate e acurada análise aos quais desde já convidamos toda a sociedade e as autoridades públicas.
A quem pretenda a atuação na gestão da investigação criminal, cabe a formação necessária e a aprovação em concurso público para Delegado de Polícia.
Sobre o sol reluzente da democracia já é possível avistar a sombra assustadora da ditadura.

Daniel Barcelos Ferreira
Delegado de Polícia
Professor de Direitos Humanos da Academia de Polícia Civil de Minas Gerais
Especialista em Segurança Pública e Complexidade

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